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Tudo a todos

Os esforços de mitigação e adaptação às alterações climáticas são classistas, machistas e racistas. Afirmo-o com segurança, apesar da falta de investigação jornalística e académica nesta área. É um facto que os riscos ambientais afetam desproporcionalmente os pobres, as mulheres e as comunidades marginalizadas.

O Banco Mundial reporta que os 74 países mais pobres do mundo emitem apenas um décimo dos gases com efeitos de estufa, mas sofrem oito vezes mais eventos climáticos extremos. As Nações Unidas calculam que 80% das pessoas deslocadas devido aos efeitos das alterações climáticas são mulheres. A Agência Europeia do Ambiente demonstrou que as comunidades ciganas são frequentemente forçadas a viver em terrenos poluídos e privadas de acesso a serviços essenciais como resultado do “racismo ambiental sistémico”.

Há uma distribuição desigual e injusta de encargos e benefícios ambientais; os primeiros são alocados a populações minoritárias e com baixos rendimentos, os segundos são privilégios de quem tem todos os direitos assegurados. Este padrão de injustiça ambiental é exacerbado pelo facto de as preocupações e perspectivas das mulheres, dos pobres e das minorias raciais e étnicas serem ignoradas nos processos de tomada de decisão.

Consideremos a localização dos aterros sanitários, das infraestruturas de produção de energia, das fábricas que mais poluem a atmosfera, das que lidam com resíduos perigosos e das que libertam efluentes para as linhas de água; consideremos que comunidades são atravessadas por autoestradas e ferrovias e quais vivem junto a portos e (futuros) aeroportos, expropriadas e expostas a enormes quantidades de poluição atmosférica e sonora.

Gostava de ver a sobreposição de um mapa com a distribuição deste tipo de estruturas em Portugal com outro que indique a evolução do rendimento médio da população em cada local antes, durante e depois da construção das mesmas. De ler um estudo que relacionasse o trabalho com riscos ambientais – limpezas, construção, agropecuária, tratamento de resíduos, operários em minas, cimenteiras e fábricas de celuloses – com o género, a raça, a etnia e a situação económica familiar dos trabalhadores.

Consideremos os projetos de conversão destas infraestruturas e de recuperação e valorização ambiental e paisagística das zonas que ocupam: a discriminação é gritante. Os trabalhadores são descartados sem qualquer esforço de requalificação nem perspetiva de emprego na mesma zona geográfica (como aconteceu com o fecho da refinaria da Galp em Matosinhos e acontecerá em Sines). A população é empurrada para locais onde o dinheiro e a vontade política ainda não chegaram, para dar espaço a pessoas mais ricas e mais brancas, agora que o aterro foi selado e é circundado por um campo de golfe (como aconteceu no Lumiar) ou transformado num parque para atividades de lazer (como acontecerá em Ermesinde).

É preciso acompanhar as pessoas mais afetadas pelas externalidades deste tipo de instalação depois do seu fecho; precisamos de saber para onde vão os trabalhadores e qual a variação dos seus rendimentos, como evoluem os preços da habitação e o que acontece aos moradores de outrora; qual o perfil de quem vivia com os encargos ambientais e o de quem vem viver com os benefícios ambientais. Só assim poderemos quebrar o ciclo de pobreza, opressão e desvantagem social perpetuado pela gentrificação causada por alegados esforços de mitigação e adaptação às alterações climáticas.

Consideremos as taxas sobre as emissões associadas a produtos e serviços, os esquemas de créditos de carbono, os seguros e outras soluções apresentadas pelo mercado financeiro para a proteção contra eventos climáticos extremos. Estas políticas fiscais aumentam o custo de vida de quem já não tem como pagar para sobreviver e mal afetam quem mais polui.

Seria revelador traçar o perfil socioeconómico das mais de mil pessoas que morreram devido às ondas de calor e dos 1,9 a 3 milhões de pessoas que, segundo dados do Governo, viviam em situação de pobreza energética em Portugal, em 2022.

Consideremos os prolíferos artigos sobre poupança de recursos aliados a um discurso de escassez, que “não há dinheiro” e “somos pessoas a mais no planeta”. Continuamos a pôr o ónus da poupança de recursos no pobre, que mal lhes tem acesso, ao invés de os irmos buscar aos lucros escandalosos de quem vende o que devia ser público. Continuamos a dizer que não dá para dar tudo a todos, enquanto 20% da população consome 80% dos recursos.

Devia comparar-se a quantidade de água, gás e eletricidade poupada pelos esforços dos mais pobres, mesmo sem acesso a educação ambiental, com a poupada pelos mais ricos, com todo o acesso que desejem a educação, cultura e financiamentos para instalar painéis solares nos telhados dos imóveis de que são donos.

O capitalismo não é justo nem verde: as alterações climáticas são exacerbadas e aceleradas por incentivo do sistema económico global que prioriza o lucro acima de tudo; o processo de transição climática é governado por uma elite branca, patriarcal, urbana e abastada.

A luta ambientalista é a luta contra todas as formas sistémicas de discriminação, começando pela pobreza, para garantir que todas as pessoas, independentemente do seu rendimento, género, raça ou etnia, vivam num ambiente limpo, saudável e sustentável, o que, tal como consagrado na resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU, no dia 28 de julho de 2022, é um direito humano universal.

Qualquer esforço menos ambicioso que este fará com que continue a crescer o fosso entre os que controlam os meios de produção e enriquecem com especulação e exploração, e os que produzem, empobrecem a trabalhar e são mais vulneráveis aos impactos negativos das atividades económicas.

Não permitiremos que este fosso cresça até dar a volta ao mundo e nos engolir a todos.


Crónica publicada na 2.ª edição da HUMANISTA, dedicada à JUSTIÇA CLIMÁTICA. A Humanista é a revista trimestral da Amnistia Internacional. Colaboração remunerada. Saber mais aqui >

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